Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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– Seja.
– Que diz, primo Henrique?
– Quando quizerem, primas; agora mesmo…
– Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada?
– Pois não viu hoje?
– Ai, pois não! Na aldeia não se chama isso uma madrugada. É preciso que se levante ás horas, a que se deitava na cidade.
– Que estás a dizer, Lena? – acudiu Christina. – Deixa-a falar. Basta que saiamos d'aqui ás cinco horas.
– Esta innocente Christina! Pois não é o mesmo que eu digo? Pergunta ao primo Henrique se tinha costume de se deitar mais cêdo em Lisboa.
– Engana-se, prima Magdalena; lembre-se de que, ha perto de um anno, sou valetudinario.
– Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que vejo é que ha por aqui muita indolencia.
– Quem a ouvir falar, ha de julgar que será ella a mais madrugadora; ora havemos de vêr – disse Christina.
Magdalena poz-se a rir.
E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou que se convidasse Augusto, por ser conhecedor do sitio e poder mostrar os mais bellos pontos de vista.
Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro, já retardado uma boa hora ao que promettera á tia Dorothéa.
Um criado serviu-lhe de guia até Alvapenha.
Henrique de Souzellas, ao findar aquella manhã, era inteiramente outro, do que viera para a aldeia. Todas aquellas horas se haviam passado, sem que o affligissem os males habituaes, sem que nem sequer pensasse n'elles. O viver intimo a que assistira, a troca reciproca de affectos entre os membros de tão numerosa familia, a franqueza cordial com que fôra recebido, produziram n'elle uma impressão profunda.
Costumado ao viver desconsolador e de gêlo de rapaz solteiro e só; não passando, nas casas que visitava, além da sala de visitas, esse palco artificioso e reservado, onde as familias ante as familias representavam a comedia social, Henrique estranhára, mas agradavelmente, o espectaculo, quasi novo, d'aquelle interior, d'aquelles modestos costumes, d'aquellas alegrias, que não se envergonham de apparecer sem reservas nem disfarces. Foi uma revelação que recebeu. Sorriu-lhe a ideia de ter um dia uma familia assim; de viver entre creanças que lhe trepassem aos joelhos, na companhia de affectos, que alli via manifestarem-se, e até com alguem que ralhasse com os criados, á maneira de D. Victoria.
Escusado é dizer que a imagem da morgadinha apparecia sempre n'estes quadros que lhe traçava a phantasia: assim como, nos quadros dos grandes mestres, apparecem quasi sempre reproduzidas as feições queridas da mulher que elles traziam no pensamento e a quem deram assim a immortalidade.
De manhã parecera-lhe a aldeia um paraiso terreal; completára-o a figura de uma mulher; sem o sorriso d'ella nem o primeiro homem seria feliz no eden, onde a mão de Deus o collocára.
– Anda, vagaroso, anda – disse D. Dorothéa a Henrique, assim que o viu chegar. – Se o jantar tiver esturro, a culpa é tua.
– Perdôe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro…
– Ah! foste lá? E então gostaste d'aquella gente?
– É uma familia para o coração. Passa-se o tempo alli tão depressa! A morgadinha, sobretudo, é adoravel!
– Ai, ai; como elle nos vem! Olha lá no que te mettes, menino! A mina boa é, mas… filho, anda alli encanto, que ainda ninguem descobriu.
Henrique fitou os olhos na tia Dorothéa, que dissera isto com certa malicia.
– Que quer dizer, tia?
– Tu bem me percebes. Anda lá, anda. Se fizesses tu o milagre, se quebrasses o encanto, grande coisa seria; mas sempre te digo que não tomes a coisa a peito, que podes aggravar o teu mal.
Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve um pouco mais preoccupado e distrahido no resto da tarde.
VI
O leitor, se alguma vez realisou uma viagem na companhia de qualquer amigo, ha de ter observado que, durante os primeiros tempos que passam juntos n'uma terra para ambos desconhecida, tão alheios ás coisas como ás pessoas, no meio das quaes se vêem, nem por momentos se soffrem separados; um segue sempre o outro em todos os passos que dá, precisa d'elle para communicar-lhe as primeiras impressões recebidas, e pedir-lhe em troca as suas; á medida porém que, pouco a pouco, se vão familiarisando mais com os logares e com as personagens d'aquelle mundo novo, afrouxa a constricção d'esses laços, e cada um principia a readquirir a independencia individual, que de motuproprio havia abdicado.
Um facto similhante nos succede com Henrique de Souzellas. Encontrámol-o na estrada; na companhia d'elle entrámos em uma terra, onde tudo nos era estranho; nada mais natural do que dar o braço um ao outro, passar juntos a manhã, e fazer, em commum, as nossas visitas. Agora, porém, que temos já algum conhecimento da terra e da gente, é tempo de nos declararmos independentes, e sacudirmos o jugo de uma companhia forçada, a qual, embora seja de um amigo estimavel, se é forçada, é sempre jugo, em certas occasiões.
Os proprios Castor e Pollux, ou Pylades e Orestes, penso eu, haviam de ter momentos em que se desejassem sós; se é que não deviam aos deuses a felicidade de possuirem curtos espiritos, o que não creio.
Deixemos, pois, Henrique de Souzellas entretendo com a tia Dorothéa a mais pacifica das conversas que podem auxiliar a digestão de um jantar; deixemol-o no tranquillo recinto de Alvapenha, e vamos associar-nos a um dos nossos recentes conhecimentos, que é Augusto, o mestre de Marianna e de Eduardo, aquelle pallido rapaz que entrevimos na sala da casa do Mosteiro.
Ao sair d'alli, Augusto seguiu através de campos e á beira de vallados, com aquelle ar pensativo que lhe era peculiar.
O pouco que da historia d'elle soubemos, pelas palavras da morgadinha, é já bastante para que nos não admire a quasi incessante melancolia de Augusto.
Aos vinte annos e sem familia! com intelligencia e mal podendo, á custa de sacrificios, cultival-a, e eleval-a á altura das suas aspirações! Alma generosa e compassiva, tendo muita vez de limitar-se a chorar os infortunios que via, porque a pobreza lhe negava meios de remedial-os!.. não serão estas ainda nuvens bastantes para toldarem a luz de uma existencia, embora a juventude as illumine?
Havia alguns annos que esta disposição para a tristeza se exacerbára em Augusto. Coincidiu o facto com algumas circumstancias, que convém referir.
A morgada dos Cannaviaes, madrinha de Magdalena e de quem viera a esta o nome de morgadinha, pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia ao morrer instituido um legado a favor de Augusto, então creança, com a condição d'elle abraçar a vida ecclesiastica. O conselheiro, pae de Magdalena, devia administrar este legado, educando o rapaz nas escolas de Lisboa ou Porto, desde o dia do seu primeiro exame até o da primeira missa, porque n'esse lhe entregaria o capital por inteiro.
Isto succedeu no tempo em que a mãe de Augusto, que havia dois annos viuvára, luctava com a miseria, e o rapaz, pela sua penetração e pelo enthusiasmo com que aprendia, causava o espanto do velho mestre regio da localidade.
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