A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio
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Название: A Morgadinha dos Cannaviaes

Автор: Dinis Júlio

Издательство: Public Domain

Жанр: Зарубежная классика

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СКАЧАТЬ style="font-size:15px;">      Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada; julgando que seria o Cancella, de quem o proprietario era, além de vizinho, confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava apenas cerrada e entrou.

      A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado á volta de cruzes de pau, para as devoções da via sacra, e de imagens de santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos. Mais do que os outros enramalhetado e enfeitado, via-se alli o bento registo de uma confraria, havia pouco tempo instituida na terra pelos missionarios, o qual occupava o logar de honra n'aquella devota exposição.

      Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta confraria, sociedade um tanto mysteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só visavam a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se apenas, em paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, teem saudades já. Os missionarios, certos evangelisadores em terras onde a palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual entraram os martyres no céo, lá andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa a acção d'esta historia, plantando a vinha, que elles chamavam do Senhor; as mulheres, abandonando os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto catholico era por elles cada vez mais arrebicado com orações absurdas e ceremonias ridiculas, e o eterno anathema da ignorancia contra o progresso da sociedade servia de thema predilecto aos seus barbaros discursos.

      Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa, a sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina do casal em questão, tomára por modo de vida as devoções da igreja, onde ia chorar as desgraças da humanidade, que tão fóra via andar da estrada direita.

      Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando a alcova conjugal, que era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e folhudas ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia á cozinha d'onde lhe continuava a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o attrahira.

      Ao contrario do que esperava, porém, só uma pessoa encontrou na cozinha, comquanto falasse com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.

      Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do Enxerto, ou vulgarmente chamado ti' Zé P'reira – nome que lhe vinha do popular e ruidoso instrumento, o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje aquelle nome. – Era muito para vêr e admirar a mestria, com que o nosso homem o sabia tocar nas festas e arraiaes, á frente das procissões e cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades publicas.

      O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e tantos annos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestigios evidentes das suas sympathias pela divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo da sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perenne sabatina com a sua cara metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no officio de hortelão e, aos domingos e dias de festa, á fôrça de rufos e pancadaria na retesada pelle do seu companheiro inseparavel – o zabumba. Era aos cuidados e vigilancia d'este par conjugal que o recoveiro Cancella confiava o seu mais precioso thesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa creança, que lhe ficára á sua viuvez tão cheia de saudades, e a quem elle mais queria do que á menina dos olhos.

      Ermelinda era afilhada da familia Zé P'reira, e a mesma a quem ouvimos referir-se Angelo no fim da carta.

      Zé P'reira estava, como dissémos, só na cozinha, quando Augusto alli chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua escala de barytono, até o mais agudo e desafinado falsete. A lingua pegava-se-lhe ao céo da bôca, difficultando-lhe suspeitosamente a articulação de algumas syllabas; era evidente que se apossára do hortelão o espirito familiar, o qual n'este caso, era um verdadeiro espirito, na accepção chimica do termo.

      Ze P'reira era um homem baixo, já grisalho, sufficientemente nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o enthusiasmo, o rapto artistico se apoderava d'elle; usava de umas suissas que pareciam tentar sumir-se-lhe pela bôca dentro; tinha longos braços, accommodados ás difficuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para baixo, lhe divergiam em angulo de mais de trinta graus.

      Quando Augusto deu com elle, o homem monologava, gesticulando:

      – Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!.. É forte desgraça!.. Aqui estou eu!.. Um homem casado… casado á face da igreja… que me casou em dia de S. Thiago o abbade que foi… e que Deus tenha em descanço. Não faltou nada… correram-se banhos deante de quem os quiz ouvir, e não houve quem puzesse impedimento… porque eu não devia nada a ninguem… sempre fui liso de contas… Sou casado com a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, filha do Antonio Canhestro, do logar dos Fójos… E casado para quê? Faz favor de me dizer? Para que casei eu?.. Forte desgraça a minha! Casei-me para isso!.. Para vir para casa e achal-a vazia, o lume apagado e o caldo na horta… e a mulher a papar missas e novenas lá por essas igrejas… Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! É forte desgraça!.. Bem morria eu de frio e de fraqueza, se não fôsse aquelle quartilhito… o ultimo, que sempre me deu sua aquella… sim… sempre me conchegou o estomago. Não que dizem que o vinho que faz, que o vinho que acontece… Pois casem-se com uma mulher que vá de madrugada para a igreja e venha de lá quando muito bem lhe pareça, e verão depois se o vinho não serve de cobrir muita lazeira que se soffre… verão depois… Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!.. Diz que Deus que disse, que a mulher que era a carne da nossa carne e o osso do nosso osso… Deus devia de vez em quando tornar a dizer estas coisas… para não esquecerem… como se faz na escola com a taboada. A minha Cath'rina já o não sabe, aposto… e pelos modos os padres não lhe dizem isto na igreja… pois deviam dizer!.. A carne da minha carne e o osso do meu osso!.. mas é carne e osso que me não fazem caldo… Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!.. Como ha de um homem, se isto assim continua, pegar na enxada para dar uma cavadela, ou fazer qualquer sachada?.. E tambem quero vêr como hei de no arraial e procissão de Santo Amaro, que não tarda ahi, dar sequer um rufo assim mais tal… assim mais scientifico? Eu se fôsse bispo…

      A caudalosa corrente d'este soliloquio foi interrompida pela apparição de nova personagem á porta do quintal.

      – Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha um bocadinho de paciencia. É um instante emquanto accendo o lume e lhe faço o caldo. Verá.

      A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha, era uma rapariga de doze annos, alva e franzina, como a mais delicada creança da cidade, com os olhos negros e expressivos de intelligencia e de doçura, e com os mais formosos cabellos louros que ainda enfeitaram uma cabeça infantil. Não havia n'elles sombra, que desvanecesse aquella côr deslumbrante; reflectia-se-lhes a luz nas ondas, naturalmente lustrosas, como em tenuissimos fios de metal; usava-os soltos e caidos, sem vislumbre de artificio, de um e de outro lado do collo.

      Condizia com a expressão angelica do semblante o suave e affectuoso timbre de voz com que falára.

      O leitor prevê de certo que é Ermelinda, a filha do Cancella, ou Lindita, como geralmente na aldeia lhe chamavam, a creança que tem na sua presença.

      Ermelinda sobraçava um mólho de hortaliça, que fôra colher ao quintal, e dirigia-se com ella para o lar, que o descuido e a indifferença conjugal deixavam ainda apagado áquella hora do dia.

      Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou, sorrindo-lhe.

      – Ai, pois estava ahi, sr. Augusto?! E o meu padrinho talvez sem reparar.

      A estas palavras o desditoso marido voltou a cabeça e fitou em Augusto um dos seus desemparelhados olhos.

      – Olá, sr. Augusto! СКАЧАТЬ