Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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– Como quer então que a trate?
– Eu sei?.. Olhe, uma ideia! Ha pouco não me comparou á Carlota de Goethe? Deixe-me pois adoptar uma lembrança d'ella. Está certo de que tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um tratamento como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque sendo o sr. Henrique sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando minha tia Victoria, a mãe d'estes pequenos e de Christina, que D. Dorothéa é ainda uma especie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a final de contas vimos a ser uma especie de primos tambem. Pelo menos assim o sustentou e decidiu hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como por primo o tratará! É um tratamento menos incómmodo; eu chamar-lhe-hei primo Henrique; chamar-me-ha, se quizer, prima Magdalena, e desterraremos para sempre a antipathica senhoria e excellencia; concorda?
– Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos o principio falso, admittido pela fidalguia em Portugal, de que «os primos dos nossos primos, nossos primos são.»
– Fica pois ajustado?
– Fica ajustado.
– Bem. Mas que ia dizer ha pouco?
– Nem eu já sei… Ah!.. Perguntava se tinha estado muito tempo em Lisboa e o que a obrigou a vir viver para aqui.
– Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a historia da minha vida. Seja; é um sacrificio inevitavel a quem se vê pela primeira vez. Deixe-me primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.
E, depois de partir a cada creança uma fatia de queijo, a morgadinha principiou:
– A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se. Eu sou filha de Manuel Bernardo de Mesquita e…
Este nome era o de um dos principaes vultos politicos da época, e que então militava no campo opposicionista, sendo indigitado para ministro na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade politica, tendo sempre advogado no parlamento as ideias mais liberaes, e militado no partido progressista.
Henrique de Souzellas, que conhecia todas as personagens de importancia no paiz, fitou Magdalena com olhar estupefacto: tão longe estava de encontrar alli a filha de um futuro ministro.
– Filha do conselheiro Manuel Bernardo! v. ex.a?
– Excellencia! Esquece-se da nossa convenção? Repare! É verdade. Não sabia que meu pae era d'aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda actualmente n'um collegio em Lisboa, somos os unicos filhos de meu pae. Nasci, como disse, em Lisboa, mas as continuas enfermidades de minha mãe fizeram-nos vir para aqui viver na companhia d'ella; aqui mesmo morreu, e aqui está sepultada. O Angelo nasceu já n'esta casa. A morte de minha mãe deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a educação que ella principiára a dar-me e para a qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui pois obrigada a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha educação. Mas, ao chegar á idade dos quinze annos, receiando meu pae que os ares da cidade desenvolvessem em mim germens de molestia, que porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez para aqui, onde sempre passava alguns mezes no anno, e para onde me chamavam tambem habitos adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte de meu tio, passado pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia Victoria, que ficou desde então um pouco… um pouco… com pouca paciencia para olhar por as coisas domesticas. Isto creou-me novos deveres; havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que estão lá dentro, e Christina, que era então creança tambem; occupei-me a ajudar minha tia.
– E tão admiravelmente, que a mais carinhosa mãe o não faria melhor.
– Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu pae devo, em parte, o ter aprendido cedo esta sciencia. Porque é uma sciencia tambem.
– Então como procedeu o conselheiro para a ensinar?
– Eu lhe digo. Meu pae tem em certas coisas umas ideias muito singulares. Excellentes as acho eu. Oh! não imagina que boa e excellente alma é a de meu pae! Era eu uma creança, tinha onze annos, talvez, quando elle, um dia, vindo de Lisboa passar aqui algum tempo comnosco, me trouxe uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de Nuremberg. Nos primeiros dias não me fartava de a vêr, de a beijar, até commigo a deitava. Oito dias depois succedia o que era de esperar, já nem d'ella sabia. Meu pae notou-o. – Então, Lena – aqui todos me chamam assim – já não gostas da tua boneca? – Disse-lhe eu: Gosto, mas… – Bem sei, já fizeste tudo o que tinhas a fazer por ella, e como, pela sua parte ella nada faz por ti, enfastias-te, canças-te de conceber, a cada momento, brinquedos novos. Tens razão; onze annos já não é idade em que o interesse se sustente com tão pouco, é necessario mais. Ora dize-me, Lena, – continuou elle – se eu te mandasse vir uma boneca que movesse os braços e os olhos, que te sorrisse, que chorasse tambem, que te beijasse até… – Pois ha bonecas assim? – perguntei eu, admirada. – E desejaval-a? – Oh! se a houvesse!.. – Trago-t'a ámanhã. Não dormi aquella noite a pensar na boneca. No dia seguinte apresentou-me meu pae uma creança de um anno, orphã de uma pobre familia, que uma epidemia extinguira, e disse-me: – Ahi tens a boneca que te prometti, Lena; vou confial-a aos teus onze annos. Veremos se tens juizo para brincares com ella. É assim que eu quero que aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira sciencia apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o desgosto dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer áquella pobre creança, fui avara nas suas caricias, troquei por ella todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte, quando, um anno depois, ella me expirou nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia educada para amar creanças.
Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem a menor affectação, sem deixar até de attender aos primos, o que augmentava o interesse com que a escutava Henrique.
– E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Cannaviaes – concluiu ella, desatando o babeiro das creanças, que tinham terminado o lunch.
– É verdade, mas d'onde lhe vem este titulo singular, prima Magdalena? – perguntou Henrique, tomando ao collo uma das creanças, que a morgadinha pousou no chão.
– É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confi – É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confirmação do titulo, que já desde creança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo na verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo Henrique da possuidora d'elle.
– Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei a pessoa a quem elle pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso…
– Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é dos mais romanticos e que, de boa vontade, escreveria outro nome debaixo do desenho de phantasia que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde e fiel jumenta, СКАЧАТЬ