Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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Mas ao fim de tres annos, Augusto, apesar de por experiencia conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter novo despacho. Na época em que abrimos esta narração, voltára Augusto de pouco de ultimar a nova prova; e estava pendente ainda a decisão do ministerio competente. D'esta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influencias da localidade, as quaes ainda não tinham podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto.
Desde que fôra para Lisboa, Angelo não se esquecera de escrever amiudadas vezes a Augusto, contando-lhe dos seus estudos, e descrevendo-lhe a sua vida na capital; e quando vinha a férias, procurava transmittir ao que fôra seu mestre a sciencia que durante o anno adquiríra.
Foi assim que Augusto principiou a estudar a lingua ingleza, a geographia e a historia.
Recebido o primeiro impulso, a sua intelligencia e applicação faziam o resto.
Um homem que havia na aldeia e com quem cêdo teremos de travar conhecimento, um velho herbanario, para alguns um sabio, para outros um louco, para todos um homem honrado, concorreu tambem, com o seu contingente, para a educação de Augusto.
De tempos a tempos, este velho mysterioso apresentava-se em casa d'elle com um pacote de livros debaixo do braço e, sorrindo, pousava-lh'os em cima da mesa.
Eram quasi sempre aquelles, que Augusto mostrava ou sentia mais desejos de possuir. Da primeira vez, Augusto fitou o herbanario com espanto. Ninguem o suppunha rico; como podia elle pois obter aquelles livros, alguns dos quaes eram de preço? O velho porém disse-lhe, ao perceber-lhe a surpreza:
– Não queiras saber da minha vida, rapaz. Suppõe que eu tenho a servir-me uma vara de condão ou uma fada qualquer, e deixa correr.
Augusto acabou por persuadir-se de que o herbanario tinha accumulado riquezas, á fôrça de economias: porque de economias vivera sempre.
De pequeno merecera áquelle velho uma singular sympathia, e com affecto de pae fôra sempre tratado por elle.
Resignou-se a acceitar sem reflexões; até porque sabia ser facil o escandalisar o velho com ellas. O que fazia era evitar, na presença d'elle, qualquer palavra que pudésse denunciar desejos de possuir um livro qualquer. Mas o velho, como se tivesse de facto algum poder occulto a informal-o, ás vezes parecia adivinhar; e trazia-lhe livros que Augusto devéras desejava, mas a respeito dos quaes tinha a certeza de lhe não ter falado, nem eram d'aquelles que o velho conhecia.
A seu pesar via-se quasi inclinado a adoptar a crença supersticiosa do povo a respeito d'aquelle seu velho amigo.
Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Angelo as informações, pelas quaes o velho se guiava na escolha. Não lhe attribuia porém o presente, porque as economias de Angelo não chegavam para tanto.
Depois de tudo quanto temos dito de Augusto, poderá ainda o leitor estranhar os ares pensativos com que o vemos?
Poucos passos andados, depois que saiu do Mosteiro, encontrou Augusto a distribuidora das cartas, que lhe entregou uma sobrescriptada para elle. Era de Angelo.
Augusto abriu-a immediatamente e leu-a ainda pelo caminho.
Era uma extensa carta, em que se succediam os periodos em um d'esses longos, incoherentes e diffusos arrazoados, que constituem a essencia de uma carta de amigo para amigo.
Angelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças e de projectos, projectos que, n'aquellas idades, nascem e morrem a todo o instante. Terminava esta carta, em que lhe participava a sua vinda á aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:
«Peço-lhe que diga á Lindita que se não esqueça de mim. Dentro de poucos dias conto ir vêr os coelhos do quintal d'ella, e ajudal-a a tirar a agua do poço. O pae d'ella chega ahi ao mesmo tempo que esta carta; leva um livro para si.»
Augusto sorriu, ao ler o post-scriptum.
– Pobre Angelo! – murmurou elle, – Deus não permitta que sobreviva á tua ultima creancice essa sympathia por Ermelinda. Estas generosas affeições de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o coração.
Havia tanta amargura n'estas reflexões de Augusto!
E, como absorvido n'ellas, caminhou para casa do recoveiro Cancella, que era o pae da pequena, a quem na carta se alludia.
VII
A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das mais estreitas ruas da aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da sua occupada e laboriosa vida.
Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o ámanhã já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a multidão nas ruas e feiras da cidade; no outro entretinha os curiosos da sua terra, deixando-lhes entrever os thesouros da experiencia adquirida á custa de muitos annos de fadigas.
As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que conjunctamente vieram, não destruiram totalmente esse typo dos antigos tempos, anterior a ellas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes limite á existencia, passaram, sustentados pela fôrça dos habitos e justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe quando de vez acabarão. Mas Cancella era além d'isso um recoveiro de uma especie rara e superior. Em todas as profissões ha sempre, no meio do vulgo, que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia dos gôsos, superiores aos interesses, que ellas podem offerecer, certo grupo de escolhidos, que as idealisam, e enxergam um raio de poesia através das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella era d'estes; era o poeta da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um touriste, e assim aproveitava todos os ensejos que se lhe offerecessem de explorar algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.
Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do conselheiro, pae de Magdalena, com as familias da aldeia, e a barateza relativa das recovagens operadas por este meio primitivo, proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as quaes o Cancella de boamente aproveitava. Era de uma d'essas expedições que elle devia voltar aquella manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.
Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a ainda fechada; escutou á fechadura, mas não pôde verificar o menor signal de que alguem estivesse dentro.
– É cêdo ainda – pensou comsigo. – Vejamos se estará em casa do compadre.
Seguiu mais para deante pela rua por onde viera. – A poucos passos СКАЧАТЬ