Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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– Deixe estar, padrinho… Verá como isto se arranja depressa… Olhe; o lume já está accêso – dizia Ermelinda, accendendo effectivamente o lume no lar.
– Já o devias ter feito antes, Lindita, – disse Augusto, sentando-se junto d'ella.
– Mas se inda agora vim das prêsas, onde fui lavar a roupa?
– Pobre pequena – disse o Zé P'reira – tambem não te ha de faltar lazeira, tambem!
– A mim? Agora. Não que eu não saí de casa com as algibeiras vazias.
– Pois sim… mas é sempre preciso coisa que conforte… Inda se tu bebesses… já não digo um quartilho…
– Credo, meu padrinho! Que está a dizer?
– Que espanto!.. Ora, senhores, que parece que o vinho é bebida amaldiçoada, que todos lhe teem mêdo! É vêr se o padre na missa…
– Padrinho! padrinho! que vae dizer? – interrompeu Ermelinda, quasi aterrada.
– Eu digo o que é verdade, rapariga!.. Tenho minha presumpção de nunca dizer senão a verdade… Lá o pespeguei na cara do sr. juiz de direito e mais do sr. doutor delegado e mais doutores, quando fui a um juramento, por causa d'aquellas pancadas no recebedor… É que nenhum d'esses santalhões, d'esses missionarios me teem que ensinar n'esse ponto… Os missionarios!.. Eu, um dia, tiro-me dos meus cuidados e dou-me ao trabalho de lhes ir perguntar, quando elles estiverem no pulpito, se Deus lhes manda que tirem as mulheres de casa, para que os maridos não tenham que comer, quando voltarem do trabalho… Um dia inda lhes vou perguntar… isso vou…
– Olhe; a agua não tarda a ferver; verá que dentro em pouco… – continuou Ermelinda.
– Bem, Lindita, bem – disse Augusto – em paga da boa vontade, com que trabalhas, vou dar-te uma alegre nova.
– A mim? Diga.
– Trago-te visitas de alguem, que em poucos dias te dará em vez de visitas, um abraço.
– De quem? Ah!.. Angelo escreveu-lhe?
– Como adivinhaste depressa!
– Pois de quem mais havia de ser? Mas diz que… em poucos dias… Então?
– Tel-o-hemos cá pelo Natal.
– Fala verdade?
– Assim m'o diz n'esta carta. Queres ler?
– Para quê? – respondeu a rapariga, fitando porém o papel com os olhos cheios de curiosidade.
– Ora lê, lê… Até para vêr se ainda te recordas das lições, que eu te dei.
– Ai, lá isso… mas, o caldo do meu padrinho…
– Deixa que o lume é que o ha de aquecer e não a tua presença.
Ermelinda approximou-se; tomando a carta das mãos de Augusto, começou a lêl-a com intensa curiosidade.
Zé P'reira proseguiu no seu monologo:
– A religião, senhores – dissertava elle – não manda tal… Isso é que não manda… A religião é a palavra de Deus… e Deus disse… sim… Deus disse… Deus disse muita coisa… Disse que por este deixarás pae e mãe. Ora a santa madre igreja é mãe, é, sim, senhores; que tem lá isso? mas não é mais mãe do que a outra mãe… e então… senhores, uma mulher não deve deixar por ella o seu marido; porque o marido, senhores, é o tudo de uma casa, e o ganhapão da familia. Ora, senhores, que é forte desgraça.
O monologo do desconsolado conjuge e a leitura de Ermelinda foram interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua.
O dinheiro paga tudo,
Não se fica a dever nada;
Toma, toma o limão verde,
Ó da fresca limonada.
E logo em seguida estalaram as taboas do soalho no corredor sob uns passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a figura agigantada e herculea do recoveiro Cancella, pae da Ermelinda. Cancella, ou o João Herodes, que assim tambem lhe chamavam por ter creado, nos autos em que era actor applaudido e popular, o typo do sanguinario e infanticida rei da Judéa, fôra pela natureza dotado de uma estatura e robustez, dignas de Adamastor.
Encontrava-se n'elle uma d'essas felicissimas realisações dos temperamentos sanguineos que, sem ameaçarem de insultos apopleticos, dão riqueza ao sangue, vigor aos musculos e á physionomia o aberto e colorido da saude e os reflexos da satisfação interior.
A barba negra e espessa cercava-lhe as faces córadas, e o natural fulgor dos olhos parecia augmentado sob o duplo arco de bastas sobrancelhas, que, quando contrahidas, os rodeavam de sombras ameaçadoras, d'onde fuzilavam relampagos. Era formidavel então!
O riso pairava-lhe porém, nos labios, quando na presença de amigos, descobrindo-lhe duas fileiras de alvissimos e bem dispostos dentes, d'esses que os excessos e absurdos culinarios ainda não deterioraram.
Parando á porta da cozinha, o Herodes (ás vezes lhe chamaremos assim, cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguem, que mais que tudo trazia na memoria – a filha. – Esta, pela sua parte, mal o reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.
O pae pegou n'ella, como se fôsse uma penna, levantou-a á altura dos labios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda palpitantes de todo aquelle intenso amor paternal.
– Ah! – exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acabava de satisfazer uma intensa necessidade do coração. – Isto consola que nem o copo de agua que a gente, em dias de calma, pede á borda da estrada, quando se leva a bôca secca e queimada de poeira! Mais do que isso me sabem estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?.. Ó sr. Augusto! tambem por cá?
– Esperava-o, Cancella.
– A mim? – continuou o homem, pousando no chão uma mala que trazia. – Pois aqui me tem. Mas, dizia eu, um homem quando anda lá fóra, e pensa no que lhe irá por casa, sente ás vezes uns sustos, que parece que lhe fazem tudo escuro… As desgraças, para succederem, não põem muito… De um momento para outro… E depois a gente ouve por lá conversas, vê coisas que parece que são agouros… e que nos fazem a noite no coração… Umas vezes é um enterro… outras, um desastre… um fogo… um… E as creanças sós, e os paes fóra de casa!.. Ai! Isto é de ralar o coração de uma pessoa… Eu bem sei que em boa companhia me fica a pequena. Aqui o compadre, tirante lá a sua aquella pelo sumo da uva… Quantos foram já hoje, compadre, hein?.. mas, tirante isso, é homem de bem: a comadre é uma santa, que só tem o defeito de querer ser santa devéras… mas emfim… tudo isso não obsta; uma coisa é uma pessoa saber o que lhe vae por casa, outra… Tremem-me as pernas sempre que entro na aldeia. A primeira alma de Christo, que encontro, estou sempre a vêr quando me vem dar alguma nova má. Salta-me cá por dentro o coração, que ninguem faz uma ideia; eu bem canto a vêr se disfarço, mas… Ai, filha da minha alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia vir achar doente!.. Assim me succedeu com tua mãe… Deixei-a uma vez tão satisfeita e alegre, e vae, quando voltei, a primeira pessoa que encontro, diz-me СКАЧАТЬ