Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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Henrique que presentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e porventura bonita, correu, com instincto de perfeito homem de côrte, os dedos pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente o laço da gravata e entrou.
Era completo o contraste d'este aposento com o primeiro; transpondo aquella porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o caracter de vetustez, que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto, modernissimo o papel que forrava as paredes, e a mobilia toda de um cunho de actualidade, visivel aos olhos menos pesquizadores. Como para tornar mais frizante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui substituida por a de duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria dos seis annos.
O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como que uma cortina corrida sobre o passado. A porta, que elle transpuzera, a barreira que separava dois seculos.
Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina ingleza, estavam as duas creanças que dissemos, com os seus babeiros brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sôpa. Em pé, á cabeceira, presidia ao lunch infantil uma mulher, de quem Henrique só pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo e não as particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas á luz das janellas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam o exame.
Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:
– Na aldeia a sala de recepções é aquella em que a gente se acha, quando lhe annunciam uma visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o viver do campo.
– E é assim que eu o aprecio, minha senhora – respondeu Henrique, approximando-se da mesa.
As creanças, interrompendo a refeição, fitavam o recem-chegado com aquelles olhos espantados e penetrantes, com que ellas, promptamente, e quasi sempre com a certeza de um verdadeiro instincto, decidem para si das sympathias ou antipathias de que lhes é merecedor um estranho, a quem vêem pela primeira vez.
A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu com a entrada de Henrique a occupação domestica, na qual estava empenhada. Mostrava receber-lhe a visita com um perfeito «á vontade», que nada tinha porém de affectado.
– Não sei se v. ex.a sabe… – ia dizendo Henrique, quando, ao chegar perto d'ella, parou subitamente em meio da phrase.
Na mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a interessante rapariga, que tanto o preoccupára.
Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada denominação de zuavo!
A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d'ella e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.
– Perdão, minha senhora – disse Henrique, comprehendendo aquelle gesto – mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não era estranha.
– E sou eu essa pessoa?
– É v. ex.a effectivamente.
– Pois já nos vimos?
– Já… quero dizer, eu já vi v. ex.a
– Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter visto nunca. Apesar d'isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas, sobrinho d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é verdade?
– Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.a não é antigo tambem; data de algumas horas apenas.
A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça uma ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde resultou para aquella gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode animar um semblante de mulher.
– Esta manhã – proseguiu Henrique, a quem os encantos d'aquelle gesto não tinham passado despercebidos – assisti a uma scena commovente. O logar era uma deveza; uma joven senhora… joven e… e com outras qualidades, além d'esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio…
Ella não o deixou continuar.
– Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto… Não admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d'agua ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual. Não lhe parece?
Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a escutar o que uma das creanças lhe dizia.
– Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d'ella no meu prato.
– Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!
– Então – disse Magdalena, que a este nome correspondia a contracção familiar, de que se serviam as creanças. – Olhem agora se teem juizo. Vejam se querem que eu vá dizer á mamã que venha para aqui.
– Não é ella a mãe, visto isso – pensou Henrique, como quem modificava uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação. – Será irmã? Talvez… Ou mestra… É mais provavel que seja mestra. Esta mulher foi de certo educada na cidade. Tem uns ares distinctos…
E elevando a voz:
– v. ex.a está-me recordando uma scena de um precioso livro, que nunca me canço de ler.
– Qual é?
– Werther.
– Ah!
– Conhece?
– Conheço… quero dizer, li-o, por acaso, ha pouco tempo. Compara-me a Carlota? É por estar a distribuir as rações d'estas creanças? Que mulher ha que não seja Carlota, n'essa parte? Em todas as casas se passa uma scena assim. Bem se vê que não tem familia.
– Por quê?
– Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo d'esta.
– É certo – respondeu Henrique com melancolia. – Deve ser essa uma das causas; mas não a unica – accrescentou galanteadoramente.
E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora tinha lido Werther.
Magdalena, СКАЧАТЬ