Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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– Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados, qualidades ou defeitos de educação não se perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará por Lisboa outra vez.
– Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha razão o doutor, que me prometteu a cura das minhas doenças, se me costumasse devéras a estes habitos campestres.
– Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?
– Por que não? Hoje já almocei ás sete horas, já andei mais do que uma semana inteira ando em Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da terra.
– As raridades?! E que raridades são essas que inda tem para vêr? A nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.
– Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do quasi nada que d'ella observei esta manhã, parece-me até…
– Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada passo se encontra um ponto de vista, que nos obriga a uma exclamação. Mas ha por ahi certos cicerones, que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas da arte. Peça a Deus que o livre d'esse flagello.
– v. ex.a assusta-me. Embora; se lhes cair nas mãos, farei por achar curioso o que elles acharem. Vae ser esse o meu systema de cura. Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o regimen que me prescreveu o medico, quando me receitou o campo, a titulo de emolliente; se o seguir, salvo-me.
– E não o diga a rir. Se quizer prender-se á aldeia, abjurar os attractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo; principiar por cultivar o interesse por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo, declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia ou pela junta de parochia contra o abbade; ralhar do regedor na questão com os taberneiros ou defendel-o. Emquanto não chegar a isso, desconfie da sua acclimação.
– Farei por conseguil-o o mais depressa possivel. Outra coisa necessaria é deixar-me convencer ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em perpetua admiração deante de uns certos nomes famosos que ha sempre em todas as terras pequenas, e que nos atiram á cabeça a cada momento. Por exemplo, aqui já sei de um, com que encherei a bôca a proposito de tudo; é o de uma celebre morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço falar, desde que puz os pés, ou por mim a alimaria que me trouxe, n'este productivo torrão.
Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.
– Então com que, tem ouvido falar muito n'essa morgadinha?
– Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora. Não ha pinhal, quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença a essa entidade, para mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos, como um estribilho de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de minha tia, na loja do correio, em toda a parte o ouço pronunciar. Parece que voga nos ares.
– Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer a pessoa.
– Qual! tem-me impacientado a ponto de nem perguntar por ella. E demais parece-me que a estou a vêr.
– Ora diga. Então como a imagina? Annica, não tens ahi um guardanapo?
– Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está dicto tudo; uma senhora nutrida, a rever saude por todos os póros, encarnada como uma romã, sobre quem os vestidos á moda assentam como pendurados de um cabide, as mãos cheias de anneis, meias luvas de retroz, um chapéo com uma cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça… v. ex.a ri-se? Acertei?
– Parece-me que sim; mas julgue-o por si já que tem á vista o original.
– Como?!
– A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.
– Vossa Excellencia!..
Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito tempo sem saber como sair da situação em que se puzera.
Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos riam, por contagio, sem saberem de quê. Tudo augmentava pois a confusão de Henrique.
– Ora confesse – insistia cruelmente Magdalena – confesse que o está lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.
Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em que, horas antes, esboçára rapidamente a figura esbelta da morgadinha, rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lh'a, disse:
– Veja v. ex.a se esse esboço, apesar da sua imperfeição, está de accordo com a estupida concepção, que eu formára.
Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.
– Ah! desenha?
– Quando os modelos tentam, tenho d'essas ousadias. Os resultados são lastimosos, como estes. Perdôe-me o original, que julguei possivel copiar, o desacato, mas…
Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.
– Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo advertil-o de uma coisa, sr. Henrique de Souzellas. Não ha nada tão mal empregado como uma fineza no campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez o achasse pouco delicado… ou pelo menos pouco amavel, se me não dirigisse d'essas phrases conceituosas e bonitas. Vive-se d'isso lá. Aqui acho-as affectadas e inuteis… Que quer? Influencias da scena. Ha tanta semceremonia no campo! Aqui todos nos tratamos como parentes: ha de vêr. Não repara como eu o recebo n'uma sala de jantar, sem nem sequer tirar os babeiros a estas creanças? Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa…
– Então v. ex.a já lá esteve?
– Eu nasci lá e lá me eduquei.
– Ah! bem se vê.
– Ah? Ahi está um ah, que eu desejaria muito que me explicasse.
– Não me será difficil fazel-o. É que antes já de ouvir falar v. ex.a, só ao vêr certa distincção, certa elegancia de maneiras, conjecturei…
– Basta. É um ah portanto, que tem umas poucas de más qualidades.
– Devéras? Uma interjeição tão innocente!
– Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante da nossa lingua; tudo exprime, a hypocrita. O seu ah é vaidoso, adulador e iniquo pelo menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia que ainda se abrigue no seu coração lisbonense; a adulação competia-me castigal-a, mas perdôo-lh'a porque quero ainda suppôr que é um symptoma da doença das cidades, a meu vêr, a principal doença, que o obrigou a procurar a aldeia; da iniquidade, da injustiça, que faz á educação que se pode dar na provincia, ha de convencer-se dentro em pouco, quando eu lhe apresentar minha prima Christina, uma rapariga, que tem vivido aqui sempre e que protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto pode dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale, aquillo que lá é tão facil perder-se depressa, uma candura adoravel. É a irmã mais velha d'estas creanças – accrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos, que comiam e conversavam um com o outro.
– Mas v. ex.a…
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