Название: A Morgadinha dos Cannaviaes
Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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– É logo ahi adeante, meu patrão. Em nós passando umas casas amarellas que ha ahi… é logo ao pé. Essas casas que digo são tambem da morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos.
O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. Até esta periodica referencia a uma personagem que elle não conhecia, impacientava Henrique de Souzellas.
E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruido das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas dos moinhos.
Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo.
– São os açudes do Casal – dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente. – Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.
Henrique nem alento já tinha para falar.
Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia tão cerrada lhe envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da salvação.
Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenções uma toada plangente, melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos.
– É uma fiada em casa do Tapadas – disse o almocreve. – É um dos maiores amigos do pae da morgadinha. Vê aquelle muro acolá?
– Eu não vejo nada. Deixa-me!
– Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha…
– Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha – exclamou Henrique.
Era evidente emfim que estavam em pleno coração do povoado. As casas appareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de vozes que tinha o que quer que era de lugubre. Era a corôa rezada em familia a Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e trémula do avô, com a voz sonora e fresca da mãe, e a juvenil das raparigas e creanças n'aquelle piedoso côro, produzindo um effeito que acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.
– Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que não a acabamos de attingir?
O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante junto ás orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do almocreve, estacou em frente de um portão de quinta resguardado por um telheiro rustico.
– É aqui – disse o guia.
– Até que emfim! – exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cançado da vida, quando antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio.
II
O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de castanho, deante do qual tinham parado.
As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime, apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique, não em demasia socegado.
A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os cães á ordem, se é licito, sem irreverencia, empregar n'este caso a phrase consagrada para outro genero de algazarra.
Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes á porta e saudou-os com a fórmula do estylo:
– Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.
E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com a menos ceremoniosa curiosidade.
– É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?
– Sou eu mesmo.
– Está um tempo muito azêdo. Eu já julgava que não vinham. Entre.
Henrique não se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.
– Entre, entre – insistia o homem.
– Mas esses animalejos?..
– Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo: passa, Tyranno!
Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!
– C'os diabos! ti'Manuel – disse o almocreve – em occasião de se esperarem hospedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.
– Forte perca! – resmoneou o outro. – Não trouxesse cá os d'elle. Não tem dúvida; entre o senhor, que elles não lhe fazem mal.
– Não entro; assim é que não entro – teimou Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.
O homem em vista d'isto encolheu os hombros e bradou:
– Ó Luiz!
Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento.
– Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem mêdo.
A creança, á palavra mêdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda abatida, fugiram deante d'ella.
O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára ajuizadamente.
– Agora vossemecê – disse o camponez para o almocreve – arranje-se como puder e mais a bêsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao senhor.
– Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas noites, sr. Henriquinho.
– Adeus, José – disse Henrique, passando para a mão do guia a esportula da gorgeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem do lampeão.
Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito de Henrique, o aspecto que lhe offerecia, áquella hora da noite, a parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.
Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado de altas camadas de matto e embebido de chuva, d'onde se exhalava um cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes aromas СКАЧАТЬ