Fanny: estudo. Feydeau Ernest
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Название: Fanny: estudo

Автор: Feydeau Ernest

Издательство: Public Domain

Жанр: Зарубежная классика

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СКАЧАТЬ de quem lhe governava a vida.

      Tudo isto se misturava em meu coração como venenos e contra-venenos, e d'esta abominavel mistura, fumavam vapores d'um travor tal, que eu me sentia na cabeça latejar o cerebro, e os joelhos vergavam sob mim.

      Isto nada era, comparado ao que eu devia experimentar n'essa estreitissima meza, onde á claridade dos globos, nenhum conviva poderia esconder os pensamentos que lhe franzissem a fronte. Ao principio, nada vi, e respondi ao acaso ás perguntas que me fizeram. Comia machinalmente. Esforçava-me por ser attencioso e polido; mas denotava mais inquietação que o assassino que se vê em risco de ser descoberto.

      Atordoado pelo tinido dos copos, pelo estrepito da baixella, pelo atrito das porcelanas, pelo reverbero das luzes nas tampas brunidas das terrinas, pelo vai-vem dos creados pressurosos que serviam, sem dizer palavra, e se moviam sem rumor d'um passo, como sombras negras de luva branca; e suffocado pela athmosphera calida da sala impregnada de evaporações penetrantes, misturadas com o odor do vinho e o das flôres, eu não olhava Fanny, nem mesmo a escutava. Tornou-se-me insopportavel a par de mim a presença d'ella: era como um peso que me abafava.

      E tambem o não encarava a elle, elle, que eu viera procurar, de tão longe, com o desejo e terror de conhecel-o. Inceguecido por visões funebres, eu não podia vêl-o, com quanto elle estivesse defronte de mim.

      De repente recobrei a minha lucidez sentindo um pé de mulher rossar o meu, e comprimil-o brandamente. Era ella a prevenir-me da minha preoccupação visivel de mais. Dirigi-lhe um lanço d'olhos agradecido; e, encostando-me ao espaldar da minha cadeira, contemplei detidamente aquelle que mal sabia que possante interesse ingendrára em mim o estudo da sua pessoa.

      XIV

      Era uma especie de touro com face humana. De estatura mediana.

      Quando comia, atirava para diante, as espaduas robustas, e a cadeira gemia sob a gravosa flexão dos seus encontros quadrangulares. Eu via-lhe do meu logar, na testa, os arcos carregados das sobrancelhas hirtas de cabellos grossos, e abaixo fulgurava-lhe um olho pardo e luzidio d'aquelle brilho metalico que reluz na pupila impassivel dos carnivoros.

      Comia, ás mãos juntas, mãos carnudas e curtas, e levantava os cotovêlos para melhor pezar sobre a faca brilhante, e sobre o cabo do garfo. Entre cada prato respirava largamente, limpava a boca, e bebia a longos sorvos grandes copos de vinho estreme.

      Não tinha má cara, nem vulgar. O aspecto era de força. Todo elle denotava pujança extraordinaria de musculos. A superficie das faces e queixo perfeitamente escanhotado, apparentava regidez marmorea, e a fronte rasgada, limpida, cercada de cabellos negros já betados de russas, revelava um espirito de vontade cheio de rectidão e persistencia.

      Era affectuoso o sorrir d'elle, e o olhar desmalicioso, porém claro como cristal. Incarava-vos de face, nos olhos, de um modo tal, que vos julgarieis felizes, evitando esse espelho de aço incommodativo á força de franco. O que elle tinha era dar cascalhadas estridorosas, repuchando em sacões os peitoraes acima da cintura apertada, e descompondo para traz a cara vermelhaça. Era grave e sonora a sua voz; o gesto tranquillo, e um pouco sombrio. Tinha bonitos dentes, unhas rosadas, brilhantes e bem feitas; em fim, dominava n'aquelle todo um ar de inteireza e aceio.

      Pareceu-me ter quarenta annos.

      Primeiro, ao vêl-o, fiquei como humilhado: corri-me de entrar em rivalidade com natureza tão possante. Involuntariamente me confrontei com elle, eu, a par d'elle tão franzino, como o seriam quasi todos os rapazes da minha idade. O que havia em mim de debilidade nervosa, e fineza de raça, e de elegancia, amesquinhava-se em comparação d'aquella riqueza de sangue, pujança de fórmas, e virilidade fria e pacata. Eu era como um sylpho contemplando, assombrado, a estatua d'um gigante. Ao pé d'elle que homem era eu? Forte e gentil expressão de homem era sómente elle, eu não.

      E, mais cruel ainda para commigo mesmo, passava depois a comparação de mim para ella. E, vendo-a sentada ao meu lado, dôce e loura como Eva, candida como uma virgem, com aquella cintura de fada, e aquelle colo requebrado em languor, e todo aquelle ar de timidez que lhe impanava a face adoravel como a sombra d'um vapor… vendo-a assim, e tão delicada no pensar, perguntava-me, eu, phrenetico, como é que ella poderá amar tal homem? Violenta associação de duas naturezas que entre si não tinham um ponto só de contacto! Irmanavam-se com a seda e com o ferro!

      Oh! Desdemona! – me dizia eu – que Othello escolheste! Mas mal sabia Fanny que furor raivava ao seu lado! Dirigia-me placidamente a palavra, olhando-me com ar de simples, e affastando com sua mão alvissima os louros anneis que lhe volteavam como plumas sobre a fronte. E fallava-lhe a elle, sem turvação nem embaraço… e dizia-lhe: meu amigo, deante de mim.

      E elle, com menos embaraço ainda, lhe respondia, todo attenções e deferencia, com ar, porém, de grande superioridade.

      O Hercules via n'ella um ser perigrino, mas absurdo: e por isso o que lhe dizia eram bagatellas, com ar amavel e paternal, como os pais as dizem aos filhinhos curiosos.

      XV

      Terminado o jantar, e passados os convivas á sala grande, e sentados em redor das bancas do whist, avisinhei-me lentamente de Fanny que aquecia os pés ao fogão.

      Encostei-me ao rebordo da chaminé; e, com palavras de ternura que lhe dizia a meia voz, intrometti coisas frivolas ditas em voz alta. Deste logar via eu as costas dos jogadores inclinados sobre as bancas em que flammejavam as velas, involtas dos seus quebra-luz, e incravadas em magnificos castiçaes de prata; ouvia o ruido dos tentos de madre-perola, e o murmurio dos equivocos que os parceiros se trocavam. Cuidava eu que estariamos assim a seguro de reparos, com alguma astucia, até porque a dona da casa fôra para o fundo da sala dedilhar no teclado do piano. Novo encanto unido a outros tantos era aquelle dos accordes ondeando o ar, a um tempo que as secretas melodias do amor, mais melodiosas ainda, cantavam em nós. Porém, separando-se do grupo dos jogadores junto ao qual até então estivera de pé, o meu rival dirigiu-se a nós com semblante gracioso, e o mais natural possivel, e perguntou-nos em que fallavamos. Com melindrosa urbanidade, que excluia todas as maneiras familiares e nos distanceava um do outro, mas com serena voz e ares cortezes, entrou elle a dirigir a conversação e eu não pude deixar de acompanhal-o.

      Por entre as melodias da muzica, e a ternura das vibrações, de que elle não dava fé, fallou-me de caça, theatros, cavallos, que sei eu! não deixando mesmo de entrar no amago dos assumptos banaes que eu imprudentemente escolhêra, mas que o interlocutor me condemnava a repetir, como se elle os julgasse unicos dignos de mim.

      Dei-lhe duas ou tres respostas bastante arguciosas, e elle applaudiu-as com os olhos, honrando-me com um gesto de assentimento.

      Assim pois que era eu para elle um instrumento assaz futil com cujas cordas brincava rossando-as com as pontas dos dedos. Se elle soubesse que em meu coração havia uma d'aquellas cordas, cujo som horrivel podia restrugir-lhe nos ouvidos, e insurdecêl-o!

      Mais tarde, vi-o assentado ao lado d'ella, na sombra que fluctuava em redor do clarão dos castiçaes. Sem me vêr a mim, nem a outrem, nem a ella, apertava-lhe machinalmente a mão, scismando talvez em não sei que. E eu, contemplava aquillo, como o mais estranho e monstruoso dos espectaculos. Em quanto a ella, fixando os olhos nos meus, estava livida como uma estatua de marfim; mas não ousava balbuciar, nem fallar, e consentia.

      XVI

      Desde essa noite, uma só preoccupação me dominou – dissipar do meu cerebro a imagem do que vira. Quiz, á custa de tudo, esquecer aquillo que me humilhava e esmagava o coração. Como eu me castigava do que fizera! Absurda cubiça de conhecer o que ella tão de siso me escondera, e que eu devia ignorar sempre!

      – Oh! СКАЧАТЬ