Memorias sobre a influencia dos descobrimentos portuguezes no conhecimento das plantas. Ficalho Francisco Manuel de Melo
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СКАЧАТЬ ao gengivre e á canella empregada na preparação do vinho adubado, chamado hippocras, muito em uso na edade média8.

      As caravanas arabes, ou berbéres traziam estas e outras mercadorias do Sudan, através do grande deserto do Sahará até aos portos do mediterraneo. D'este commercio e do nome de Grana paradisi, o qual proveiu de ser preciosa a especiaria, e misteriosa a sua origem, nos dá noticia uma importante passagem de João de Barros9. Vê-se pois, que o nome de malagueta foi bem conhecido e usado na Europa desde o começo do seculo XIII, e que n'este e seguintes, até ao meiado do XV, o transporte d'esta substancia era exclusivamente feito pelas kafilas ou caravanas dos mercadores africanos.

      As eruditas e clarissimas demonstrações do visconde de Santarem10 e do sr. H. Major11 pozeram tão fóra de duvida, o caracter fabuloso das viagens[11] normandas do XIV seculo, e do supposto commercio ou trato de mercadorias, feito entre Dieppe e Roão, e a costa de Africa, que bem podemos passar em silencio o que Villaud e o sr. Margry nos dizem a tal respeito.

      Os nossos navegadores tiveram conhecimento da malagueta ainda em tempo do infante D. Henrique, como se deduz da já citada passagem de João de Barros. Quando falleceu o infante, ainda não tinhamos chegado á parte da costa, que mais especialmente recebeu depois o nome d'aquella especiaria, e corre do cabo Mesurado ao cabo das Palmas; mas tinhamos conhecimento dos terrenos banhados pelo rio Gambia, rio Grande e rio de Geba, aonde egualmente se encontra. Das relações de viagem, que deixou o veneziano Alvise Cadamosto, tanto das duas a que elle proprio foi, por mandado do infante, como da que emprehendeu Pedro de Cintra, o qual chegou ao arvoredo de Santa Maria, além do cabo Mesurado e já na costa da Malagueta, não consta que se encontrasse a droga nas terras d'onde é natural. Falla é verdade da malagueta, mas como de mercadoria, que as caravanas de passagem em Hoden, ou Guaden traziam de Tombuto e outras regiões habitadas pelos negros12. Conhecia pois Cadamosto aquella especiaria, e é singular que a não encontrasse ou não mencionasse nas noticias detalhadas que dá das terras do Gambia, e do Casamança, tanto mais que o genovez Antonio da Nolle, ou Antonio Uso di Mare, seu companheiro de viagem, fallando do rio Gamba, diz que ahi entrou porque in ipsa regione aurum et meregeta colligitur13. Na narração da viagem de Diogo Gomes, levada a cabo ainda em tempo do infante pelos annos de 1456 ou 1457, encontramos uma interessante menção. Estando detidas as tres caravellas de seu commando pouco além da foz do rio Grande (o actual rio de Geba), pelas correntes fortissimas, que lhes embargavam o passo, vieram de terra os naturaes, trazendo pannos de algodão, marfim e malagueta em grão e tambem nos fructos em que nasce, de que elle (Diogo Gomes) teve grande contentamento14.[12]

      É para notar, que os nossos escriptores não fallam da malagueta, como de coisa nova e então descoberta, mas sim como de especiaria bem conhecida, e de feito sabemos o era, a qual, por ser preciosa, os navegadores folgavam de encontrar. É um sentimento analogo, ao que, alguns annos depois, deviam experimentar chegando ás terras da pimenta e do cravo.

      Encontramos a prova da importancia, que desde logo teve a malagueta em um valioso documento do XV seculo, o celebre globo de Martinho Behaim. É bem sabido, que este notavel cosmographo, discipulo do mais afamado astronomo dos seus tempos, Regiomontanus, se estabeleceu em Portugal, para onde fôra attraido, como outros distinctos sabios, pela fama, que ao longe corria da revolução feita nos conhecimentos geographicos, e na arte de navegar pelos descobrimentos dos portuguezes. Assistiu muitos annos em Lisboa, e na ilha do Fayal, d'onde era natural sua mulher, fazendo apenas algumas curtas viagens á Allemanha, sua patria, e vindo a fallecer em Lisboa no anno de 1506. N'esta cidade se encontrou de 1480 a 1484 com Cristovão Colombo, o qual já andava empenhado nos seus projectos de viagem ao occidente, e alguns auctores pretenderam, ainda que com pouco fundamento, attribuir-lhe a gloria dos descobrimentos de Colombo, e tambem dos de Magalhães, dizendo que se haviam guiado por seus avisos e conselhos, ou por alguns mappas seus, em que se achava indicada a existencia do continente americano e mesmo a sua terminação austral. No anno de 1484 acompanhou Martinho Behaim a Diogo Cam, em uma viagem ao Congo, e de volta á Europa, ajudado pelo que elle proprio observara, e pelas informações colhidas entre os portuguezes, construiu o globo que ainda se conserva em Nuremberg15. Nos rotulos ahi gravados, além de outras indicações, que não vem para o nosso assumpto, lê-se o seguinte: «Chegámos ao pays que chamão reino de Gambia aonde cresce a malagueta,[13] afastado de Portugal oitocentas léguas, passámos depois ao pays do rei de Furfur que está a mil e duzentas léguas, aonde cresce a pimenta chamada de «Portugal16.» Por aqui se vê que estas drogas não só eram bem conhecidas, como tidas pelos mais valiosos productos vegetaes d'aquellas regiões, e por isso mencionadas nos curtos rotulos aonde se descreviam as principaes feições das terras figuradas no globo.

      Dos fins do XV seculo, ou principios do seguinte temos uma curiosa e detalhada noticia da malagueta e do seu commercio, em um livro que ainda se conserva inedito, intitulado Esmeraldo de situ orbis, escripto por Duarte Pacheco, um dos capitães portuguezes mais conhecidos por seu denodo e extremado valor. Dos seus heroicos feitos na India fazem menção João de Barros, Castanheda e Camões. Voltando da India governou o castello da Mina, e caíndo depois, por intrigas que lhe moveram, no desagrado d'el-rei, foi preso e terminou a vida pobre e abandonado. Da ingratidão d'el-rei D. Manuel o vingaram bem algumas admiraveis oitavas de Camões17. O Esmeraldo foi terminado, ao que parece, no anno de 1503, isto é logo que Duarte Pacheco voltou da India, para onde fôra em 1503 na armada de Affonso de Albuquerque, e aonde ainda permanecia em 1504. Attendendo ao curto periodo decorrido entre o regresso do oriente e o offerecimento do livro a el-rei D. Manuel, é natural suppor que estivesse já composto antes da sua partida, e que as informações minuciosas sobre a costa de Africa, que ali se encontram, fossem colligidas nas viagens de que Duarte Pacheco falla, feitas nos fins do seculo XV, ainda em tempo de D. João II, de cuja casa era cavalleiro18.

      Terei de examinar mais detidamente este livro nas paginas seguintes, basta[14] dizer por agora, que o auctor conhecia mui bem a malagueta e as suas diversas designações, pois na descripção da costa de Africa, diz fallando da matta de Santa Maria: «e d'aqui se comessa o resguate da malagueta que em latim se chama grany paradisy (sic)».

      Ainda devemos citar uma passagem da historia ou relação da viagem de um piloto portuguez á ilha de S. Thomé. Não era homem vulgar este piloto, antes parece ter sido muito lido e erudito. Estando em Veneza travou amisade com o bem conhecido Jeronymo Fracastor, e com o conde Romualdo de la Torre, e occupou-se em estudar e interpretar o periplo de Hannon. O conhecimento, que já então tinha da costa da Africa occidental aonde fôra varias vezes, habilitava-o a lançar alguma luz na obscura relação, que nos ficou, da tão discutida e celebrada viagem dos carthaginezes. E certo que Ramusio se serviu muito, na sua interpretação do periplo, das observações e esclarecimentos fornecidos pelo portuguez19. De volta a Villa do Conde, d'onde era natural, escreveu o anonymo piloto a relação de uma das suas viagens á ilha de S. Thomé, relação que enviou ao Conde de la Torre, e que, vertida em italiano, foi publicada por J. B. Ramusio. Deprehende-se das datas citadas ter a viagem tido logar pelos annos de 1551 ou 1552.

      No capitulo VI20 tratando da Costa de Guiné e Benim diz o seguinte: «Nasce n'esta costa a especiaria chamada malagueta, muito semelhante ao milho da Italia, porém de um gosto forte como a pimenta; produz-se alli tambem uma pimenta fortissima, mais do dobro do que he a de Calicut a qual nós os Portuguezes, porque ella tem um pezinho que conserva depois de secca chamamos pimenta de cauda21; he muito semelhante СКАЧАТЬ



<p>8</p>

Na Form of cury., manuscripto do chefe das cozinhas de Ricardo II de Inglaterra, do anno de 1390 vem a receita do hippocras. Veja-se Flük. et Hanbury (Pharmac. p. 479).

<p>9</p>

Diz o chronista (Asia. dec. I, liv. II, cap. III), «sempre houve descobrimentos, assi como da costa donde veo a primeira malagueta, que se fez per o infante don Henrique. Da qual alguma que em Italia se havia, ante deste descobrimento, era per mão dos mouros d'estas partes de Guiné, que atravessavão a grande região de Mandinga e os desertos da Libya, a que elles chamão Çahará té aportarem em o mar mediterraneo, em hum porto por elles chamado Mundi Barca, e corruptamente Monte da Barca. E de lhe os Italianos não saberem o lugar de seo nascimento por ser especearia tam preciosa lhe chamarão Grana paradisi, que é nome que tem entrelles.» Sobre o conhecimento, que os portuguezes tiveram do commercio feito pelo interior da Africa com a terra dos negros, veja-se o que diz Azurara (Chr. do desc. de Guiné, p. 364 e seguintes). Veja-se tambem o que diz Leão Africano do commercio feito em Mesrata, e outros portos ao oriente de Tripoli, isto é não longe da região de Mundi barca, pelas galeras venezianas, que ahi carregavam mercadorias da Ethiopia (Ramusio. Delle nav. etc., I. p. 72. Venetia 1563). Das especiarias da terra dos negros falla o celebre viajante arabe, enumerando os objectos que compunham um explendido presente enviado ao rei de Fez por um grande senhor de Tensita, entre os quaes se incluia certo pepe di Ethiopia (ibid. p. 24 v.º), e tambem na relação de um singular banquete, que lhe deu um chefe berbér, no qual, além de carne de camello, e de abestruz assado, figurava buona quantitad di spetie della Terranegra (ibid. p. 6). O dr. Daniell em um excellente artigo sobre os Amoma d'Africa, publicado no Pharmaceutical joumal, diz, que Marmol deu a primeira indicação definida sobre o caminho por que antigamente se transportava a malagueta até á Europa, o que não é exacto, pois a primeira edição da Africa de Marmol é de 1573, e a primeira década da Asia de Barros, aonde vem a passsagem, tão explicita, acima citada, publicou-se em Lisboa no anno de 1552.

<p>10</p>

Memoria sobre a prioridade dos desc. dos port. na costa d'Africa occidental. Paris, 1841.

<p>11</p>

Life of Prince Henry, etc. preface XXV e p. 117.

<p>12</p>

Collecção de not. para a hist. e geogr. das nações ultram etc. II p. 17. As viagens de Cadamosto, publicadas primeiro em italiano, e inseridas mais tarde na collecção de Ramusio, foram depois vertidas em portuguez pelo academico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso, para fazer parte das citadas noticias dadas á estampa por ordem da Academia Real das Sciencias de Lisboa.

<p>13</p>

Em uma carta encontrada por Gräberg nos archivos de Genova, publicada em 1802 (Ann. di geogr. e statist. tomo II, p. 385), e que vem transcripta na integra nas notas de Major (Life of Pr. Henry, p. 102). Veja-se tambem o que diz o visconde de Santarem (Chr. da conquista de Guiné por Azurara, p. 449 nas notas). O sr. Major põe em duvida a authenticidade d'esta carta, e de feito não só é de uma grande incoherencia de linguagem, como contém affirmações de todo o ponto inexactas.

<p>14</p>

… et venerunt Mauri de terra in suis almadiis, et portaverunt nobis de suis mercimoniis sc. pannos bombicinos seu cotonis, dentes elephantum et unam quartam mensuram de malagueta in grano et in corticibus suis sicut crescit, cum quo multum gavisus fui. Veja-se a relação de Diogo Gomes intitulada De prima inventione Guineae, na memoria do dr. Schmeller (Ueber Valenti Fernandes Alemã und seine Sammlung etc. p. 26). Sobre a collecção de manuscriptos, formada em Lisboa pelo celebre typographo Valentim Fernandes, veja-se, além da citada memoria, o que diz o sr. H. Major (Life of prince Henry etc. preface XVI e p. 228).

<p>15</p>

Sobre Martinho Behaim: veja-se de Murr (Note sur le chevalier portugais Martin Behaim, trad. de H. Jansen); veja-se tambem a erudita noticia de Humboldt (Hist. de la géogr. du nouveau Continent, I, p. 258-283), e uma excellente memoria de Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (Memorias de Litteratura Portuguesa, t. VIII, p. 365 e seguintes, ed. 1856). A data da sua viagem com Diogo Cam, foi fixada com muito rigor por A. M. de Castilho (Etudes historico-géographiques, 2.e etude, etc., p. 33 e seguintes). Encontra-se no Atlas do visconde de Santarem, I, X, a reproducção de uma parte do globo.

<p>16</p>

O merito de ter chegado ás regiões da Africa aonde cresce a malagueta, foi attribuido a Martinho Behaim, e foi-lhe depois negado e attribuido a Affonso de Aveiro por Sprengel (Gesch. der geogr. Entd., p. 376, citado por Humboldt, Hist. de la géogr. du nouveau Continent, I, p. 259). Ha aqui um erro, pois que João Affonso de Aveiro trouxe do reino de Benim não a malagueta, mas a baga do Piper Clusii, a pimenta de rabo, chamada por Martinho Behaim pimenta de Portugal. Demais, muito antes de João Affonso de Aveiro ter ido á costa de Benim, e Diogo Cam além da foz do Zaire, tinham os portuguezes encontrado a malagueta, como se vê da historia de João de Barros, da carta de Antonio da Nolle, e da narração de Diogo Gomes.

<p>17</p>

Veja-se sobre Duarte Pacheco o que diz João de Barros (Asia, dec. I, livro VII, cap. II e seguintes), assim como Damião de Goes na (Chr. d'el-rei D. Manuel, I parte) e Camões nas oitavas 12 a 25 do canto X.

<p>18</p>

O titulo do manuscripto é o seguinte: Esmeraldo de Situ orbis feito e composto por Duarte Pacheco cavalleiro da casa del Rey D. João o II de Portugal, que Deus tem, dirigido ao muyto alto e poderoso principe e serenissimo senhor, o senhor Rey D. Manuel nosso senhor, o primeiro d'este nome que reynou em Portugal. D'este livro existem duas copias, as mais completas e authenticas na Bibliotheca de Evora, das quaes deu noticia o distincto escriptor o sr. Rivara no vol. V do Panorama. Consultei a copia que possue a Bibliotheca Nacional de Lisboa, extraída de outra, que parece ter pertencido a D. Rodrigo da Cunha, bispo do Porto, e mais tarde arcebispo de Lisboa. Era para sentir, que esta importante obra se conservasse ainda inedita, mas julgo que em breve será publicada, por iniciativa e sob a direcção do sr. João de Andrade Corvo.

<p>19</p>

Veja-se a curiosa relação de Ramusio, sobre as informações que lhe deu o piloto a quem chama «persona périta, non solamente del'arte dell mare, ma anchora per le lettere e per il molto legger di diverti auttori pieno di molta cognitione.» (Ramusio, Delle navig. etc. I. p. 112 V.º Venetia, 1563.)

<p>20</p>

Cito a traducção publicada por ordem da Academia das Sciencias e feita pelo socio Sebastião Francisco de Mendo Trigoso. (Collec. de not. para a Hist. etc., II, p. 87.)

<p>21</p>

No texto italiano vem em portuguez o nome de pimenta de rabo, que era effectivamente a expressão vulgar; mas foi convertida em fórma mais academica na versão portugueza.