A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910). Abreu Francisco Jorge de
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      A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)

      Falando aos leitores

      De todos os relatos que vieram á tona da imprensa portugueza sobre episodios do movimento que implantou a Republica no nosso paiz, conclue-se nitidamente esta coisa curiosa: raros foram os pontos do programma revolucionario que se cumpriram á risca. No emtanto, o movimento triumphou. As longas horas de espectativa dolorosa, que uns passaram a desafiar a morte e outros a contas com a torturante ignorancia da verdade, desfecharam na manhã de 5 de outubro em delirante estralejar da victoria – alcançada simultaneamente pelo esforço heroico de meia duzia de patriotas e a inacção de centenares de descrentes. O movimento triumphou apesar de tudo: da ausencia, no momento supremo, de elementos de coordenação revolucionaria, do desanimo que bem cedo invadiu quasi a totalidade dos dirigentes da campanha, da falta sensivel de armamento destinado aos carbonários e outros civis.

      Na madrugada de 4 de outubro, á hora em que um troço de populares e de soldados arrastava pela Rotunda o enthusiasmo dos primeiros momentos de combate bem succedido, ainda n'uma casa dos lados da Sé duas creaturas devotadissimas fabricavam bombas que um emissario da Revolução d'ahi a pouco devia ir buscar. Mas o emissario não appareceu e um dos «fabricantes» sahiu á rua a inteirar-se da situação. Cahiu logo nas garras da policia… E como este, muitos outros incidentes occorreram na madrugada celebre, mais proprios, sem duvida, a embaraçar a eclosão do triumpho do que a facilital-a.

      É que se do lado dos revolucionarios havia quem supportasse, com fé inquebrantavel, todos os obstaculos – e não poucos – que surgiram ante o seu designio, do lado do inimigo a convicção da perda irreparavel da monarchia enraizara-se profundamente, abalando, com diminutas excepções, as consciencias as mais empedernidas. Parece que, mal soaram no silencio tragico da noite os primeiros tiros de canhão, a maioria das creaturas, ás quaes incumbia a missão de luctar pelo regimen extincto, teve a visão clara da inutilidade do seu esforço 1.

      A influencia moral desprendida do acto revolucionario, já em precipitado desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no campo revoltoso, a immediata adhesão do «Adamastor» e do «S. Rafael» ao movimento, o bombardeamento do paço, a fuga do rei e a derrota das baterias de Queluz contribuiram innegavelmente, e em larga escala, para assegurar a victoria da Republica; mas, a par d'esses factores, não é licito esquecer a molleza, a inercia dos que constituiam o inimigo, uma e outra derivadas d'um scepticismo que a monarchia, sem dar por isso, inspirava desde muito aos proprios que a serviam.

      É cedo, porém, para entrarmos na enumeração e apreciação d'esses factores. O nosso proposito, narrando o que vae lêr-se, é fixar, com o melhor methodo possivel, os pormenores da sacudidela feliz que destruiu a monarchia portugueza, as «étapes» do verdadeiro sonho durante o qual se desmoronou a dynastia dos Braganças. É um pouco a historia da organisação revolucionaria seguida logicamente do relatorio da batalha de 4 e 5 de outubro. Aqui e ali resaltarão diversas notas confiadas por authenticos conspiradores ao signatario d'estas linhas e que, se não modificam a impressão geral do quadro da revolta que os leitores conhecem, emprestam-lhe, comtudo, «nuances» absolutamente ineditas que é justo e necessario pôr em lettra redonda.

      A historia da organisação revolucionaria – sabemol-o perfeitamente – escreveram-na tres homens durante o periodo febril da sua preparação. Um d'elles, Miguel Bombarda, destruiu, pouco antes de morrer, o capitulo mais interessante, o que delineava, em traços symbolicos, todo o plano de ataque ás instituições monarchicas. Liam-se n'esse capitulo a força imponente dos elementos revolucionarios e a sua distribuição pelos pontos vulneraveis; era o balanço, lucidissimo para os iniciados e inintelligivel para os profanos, do grande exercito democratico que se aprestara a investir contra a realeza. Miguel Bombarda destruiu-o receioso de que viesse a cahir, apoz a sua morte, em poder do inimigo.

      O outro capitulo escreveu-o João Chagas ao sabor da opportunidade, em minusculos pedaços de papel, nas margens livres de cartas e telegramas e até em bilhetes de visita. Era o resumo fidelissimo das assembleias revolucionarias que antecederam o movimento, as «actas» das reuniões secretas de militares, o registo palpitante das adhesões que dia a dia faziam engrossar a legião republicana. Esse capitulo não foi destruido. Atravessou o periodo mais acceso da lucta escondido n'um chapéu feminino – o chapeu da esposa do illustre pamphletario – e só reviu a luz do dia quando o governo provisorio já tinha iniciado a sua obra de reorganisação politica.

      Ainda outro capitulo – o da implantação da Republica, lista dos actos, das determinações que deviam succeder immediatamente á consagração solemne do triumpho. Esse esteve, por instantes, condemnado a desapparecer nas profundezas d'um syphão, transitou depois de algibeira para algibeira e por fim encontrou refugio seguro na redacção d'um jornal, a «Lucta»… a dois passos da policia.

      Qualquer d'esses capitulos, publicado isoladamente despertaria um real interesse e daria margem não só a variadissimos commentarios como a uma legitima exclamação de não menos legitimo espanto. Mas a nossa pretensão é mais modesta. Na leitura do que vae seguir-se, encontrar-se-hão simplesmente os elementos aproveitaveis á formação d'um quarto capitulo, meramente subsidiario, não traçado por espirito de revolucionario – que o não fomos – mas annotado por quem, durante o periodo de incerteza, limitou a sua acção pessoal a tomar apontamentos, a ouvir informações, a apreciar incidentes, a defrontar muita decisão, muita coragem, e, sobretudo muito medo, muito pavor. De mistura com isto, repetimos, apparecerão os depoimentos dos revolucionarios authenticos, dos que jogaram a vida n'uma cartada de exito.

J. DE A.

      CAPITULO I

      Da perspicacia dos espiões ao serviço do antigo regimen

      A policia, que o defunto juizo de instrucção criminal empregava especialmente na espionagem dos chamados agitadores da opinião, recebeu um bello dia do final do reinado de D. Carlos o encargo de averiguar o que projectava de sensacional o partido republicano, que uma denuncia affirmava mover-se activamente n'uma conspiração surda, mas tremenda. Os bufos puzeram-se immediatamente em campo e, dentro de curto prazo, davam ao chefe conta pormenorisada da sua missão. O relatorio d'essa espionagem, que pretendia, se não estamos em erro, elucidar policialmente o trama revolucionario do 28 de janeiro, é a documentação mais perfeita sobre a incapacidade dos que essa mesma espionagem exerceram. Um dos bufos diz pouco mais ou menos isto:

      Na noite de… ás… horas, vi entrar na casa n.º… da rua de… um individuo magro, trigueiro, nariz comprido e de oculos, que se me constou ser empregado d'um judeu lá para os lados de… Sahiu da mesma casa ás… horas e tambem se me constou que assistiu com mais vinte e tantos individuos a uma reunião secreta.

      Evidentemente, no relatorio do espião, faltam os dados essenciaes. É uma cousa vaga, que nenhum chefe de policia podia acceitar de boa fé para d'ella concluir que o revolucionario assim visado era um dos mais solicitos republicanos de Alcantara. Mas servia ao momento para justificar a verba ministerial applicada a esta e outras diligencias e tudo conjugado, tudo espremido em volta d'outra informação policial que descrevia um passeio de propaganda nocturna dado pelo sr. dr. Antonio José de Almeida ás proximidades d'um cemiterio – onde conferenciara com soldados e marinheiros – deu em resultado o supremo dirigente da espionagem enveredar pelo caminho da phantasia, já que a verdade lhe não era nitidamente facultada pelos vãos esforços dos seus subordinados.

      Houve um momento em que a Parreirinha – ou a Bastilha, como quizerem – suou em bica para achar o fio do complot. Pensou-se mesmo em peitar uma creatura que se adivinhava intimamente ligada ao movimento revolucionario e obter d'ella, com a promessa deslumbrante de farta recompensa, as informações que os bufos não conseguiam arranjar. Apertou-se a rede da espionagem, principalmente sobre o rasto e os menores gestos dos drs. Antonio José de Almeida e Affonso Costa e João Chagas. Certa noite, o ex-ministro do interior, dirigindo-se para СКАЧАТЬ



<p>1</p>

Em 1891, por occasião da revolta do Porto, não succedeu assim. «Para o paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens officiaes» – dissemol-o no 31 de Janeiro. – «Todos á porfia accorriam á regia morada». Quasi vinte annos depois, no instante do perigo, fugiam d'ella…