Название: O Inferno
Автор: Callet Auguste
Издательство: Public Domain
Жанр: Зарубежная классика
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É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é anniquillada.
Se tal logar existe, de que serve o inferno?
Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.
Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a sua natural sensibilidade, e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento. Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma, que cahira crente, levanta-se atheista.
Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o blasfemar dos condemnados.
Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os castigos ahi soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.
As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.
III
Necessidade do purgatorio
Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai, viuva ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis maus em prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que se deitam e levantam sem remorsos? Não conheceis innocentes opprimidos, anciãos abandonados, orphãos desbalisados, pessoas honradas cuja vida é toda padecer e que nenhuma lei feita ou por fazer defenderia de homens ingratos e perversos? Se sois feliz hoje, sêl-o-heis amanhã? Convencei-vos de que negar a vida futura, seria o mesmo que negar a immortalidade da alma, e logo sua liberdade e responsabilidade; e, por consequencia, o mesmo seria negar virtude, direito, Providencia, e constituir este baixo mundo um verdadeiro inferno, um sonho, um pesadêlo, onde tudo seria horror e abominação, excepto o nada, tudo injusto, excepto o crime victorioso, tudo absurdo, excepto a inveja, o egoismo, a violencia, e a astucia que se roja. Ah! crêde na vida futura, com suas expiações e recompensas. E, se ha quem exclua do ceo a piedade, não vades vós, por uma irracional desforra, excluir tambem do ceo a justiça.
IV
Mysterios
Não nos accusem os theologos de negarmos acintemente os mysterios.
Os theologos referem o que vae no inferno como se tivessem por lá viajado. Pelo que elles dizem é paiz dos mais conhecidos: sabe-se o caminho, quaes são os seus productos, e qual o modo de viver dos seus moradores, bem como a origem, nomes e a gerarchia dos principes que lá reinam. Em outro capitulo estudaremos as edificantes descripções que fazem d'elle já physica, já moralmente.
Ácerca do purgatorio tem havido mais prudencia quasi nada se sabe do que la se passa: é portanto mais mysterioso que o inferno. Todavia, sem impedimento de ser mysterioso, que differença! Quanto mais profundamos a eternidade penal, menos se acredita; ao invez, quanto mais pensamos no purgatorio, mais nos sentimos compellidos a crêl-o. É o inferno mysterioso como o diabo, como a noite, como a contradicção, a confusão e o chaos. É o purgatorio mysterioso como Deus, como a alma, como a consciencia, como a vida, como a luz que nos alumia, como a materia impenetravel, como toda a natureza, como a verdade, como tudo o que existe e de que nós apenas conhecemos em sombra a existencia e apenas percebemos atravez de um veo, mas o bastante para não poder duvidar. É elle tão certo como tudo o mais do mundo; assenta no intimo de nossa alma sobre as mesmas bases da moral, do direito, do dever, do respeito a outrem, piedade, liberdade, amor, e sentimento do infinito. É por tanto o purgatorio, quanto á razão, o verdadeiro mysterio da justiça divina, assim como a Incarnação e a Paixão, quanto á fé, são o mysterio do Amor divino; – mysterio de justiça que, de mais a mais, se concilia maravilhosamente com aquelles mysterios d'amor, dos quaes o inferno perpetuo seria a negação.
Muitissimo nos espanta que os protestantes o não vissem. Quando tinham que escolher entre dous dogmas inconciliaveis, um velho e outro novo, sacrificaram, tanto em nome do Evangelho como da razão, um dos dois que mais se harmonisava com as leis da razão e a moral do Evangelho.
V
O paraiso
Os protestantes não conhecem termo medio entre paraiso e inferno; os catholicos, porém, acreditam-no, e segundo elles é o purgatorio ceo nubloso e triste, inferno onde se ora e espera, e que deve acabar. Infelizmente os catholicos não enviam todos os mortos ao purgatorio, crendo que se póde transpor aquelle meio entre ceo e inferno, sem ainda lá pôr o pé. Á similhança dos protestantes, ensinam que muitas almas, apenas despidas do seu involucro mortal, são despenhadas para sempre no eterno abysmo, ao passo que outras almas, logo que despedem da terra, alam-se direitas ao paraiso. Ensinam tambem, uns e outros, que o mais abominavel patife, convertido á ultima hora, póde morrer contente: eil-o vai absolvido como o bom ladrão; não tem mais que fechar os olhos e acordar entre os anjinhos.
É isto possivel? É isto verdadeiro? Que é pois o paraiso, e que idêa fazemos d'elle?
Pois que! verei eu do seio da bemaventurança, e na inalteravel tranquillidade dos justos, verei sem remorso e sem afflicção, encadearem-se a meus pés, já na terra, já no inferno, as tristes consequencias das minhas iniquidades? Nas minhas noites de libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais do que eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu beijando-me as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus! D'entre elles os peores que eu feri eram innocentes comparados comigo, e eil-os mortos intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem; eil-os engolphados na gehenna, com o coração roido pelo verme que não morre, gementes, chorosos, amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu, peccador envelhecido na impiedade e agraciado por um milagre, louvarei Deus eternamente, por me haver feito instrumento da condemnação d'aquellas pobres almas!
Com as minhas delapidações, reduzi СКАЧАТЬ