Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
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Название: Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)

Автор: Machado de Assis

Издательство: Bookwire

Жанр: Языкознание

Серия:

isbn: 9782291092704

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СКАЧАТЬ ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse ao filho:

      — Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que está à morte.

      Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...

      Era o meu delírio que começava.

      7

      O delírio

      Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; faço-o eu, e a sciencia m’o agradecerá. Se o leitor não é dado á contemplação destes phenomenos mentaes, póde saltar o capitulo; vá direito á narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.

      Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

      Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de S. Thomaz, impressa n’um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéa esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de certo), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

      Ultimamente, restituido á fórma humana, vi chegar um hippopotamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei si por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

      — Engana-se, replicou o animal, nós vamos á origem dos seculos.

      Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo de Achilles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir á ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos seculos, se era tão mysteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consummação dos mesmos seculos; reflexões de cerebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio augmentava com a jornada, e que chegou uma occasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava n’uma planicie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegatação de neve, e varios animaes grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas apenas pude grunhir esta pergunta anciosa:

      — Onde estamos?

      — Já passamos o Eden.

      — Bem; paremos na tenda de Abrahão.

      — Mas se nós caminhamos para trás! redarguiu motejando a minha cavalgadura.

      Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incommodo, a conducção violenta, e o resultado impalpavel. E depois — cogitações do enfermo — dado que chegassemos ao fim indicado, não era impossivel que os seculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho, e a planicie voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar sómente; nada vi, além da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio ceu, até alli azul. Talvez, a espaços, me apparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silencio daquella região era egual ao do sepulchro: dissera-se que a vida das cousas ficára estupida deante do homem.

      Cahiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto immenso, uma figura de mulher me appareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das fórmas selvaticas, e tudo escapava á comprehensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diaphano. Estupefacto, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delirio.

      — Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

      Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o effeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.

      — Não te assustes, disse ella, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se affirma. Vives; não quero outro flagello.

      — Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existencia.

      — Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dôr e o vinho da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciencia rehouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

      Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabellos e levantou-me ao ar, como se fôra uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorsão violenta, nenhuma expressão de odio ou ferocidade; a feição unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, deante do qual me sentia eu o mais debil e descrepito dos seres.

      — Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua contemplação.

      — Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fabula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razão ausente não póde reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagello, nem, como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E por que Pandora?

      — Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?

      — Sim; o teu olhar fascina-me.

      — Creio; eu não sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.

      Quando esta palavra echoou, como um trovão, naquelle imenso valle, afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição subita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos supplices, e pedi mais СКАЧАТЬ