Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
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Читать онлайн книгу Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial) - Machado de Assis страница 36

Название: Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)

Автор: Machado de Assis

Издательство: Bookwire

Жанр: Языкознание

Серия:

isbn: 9782291092704

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СКАЧАТЬ não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos juros...

      Vinham tossidas estas palavras, ás golfadas, ás syllabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas orbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estructura ossea do corpo, pontudo em dous lugares, nos joelhos e nos pés; a pelle amarellada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o craneo rapado pelo tempo.

      — Então? disse o sujeito magro.

      Fiz-lhe signal para que não insistisse, e elle calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar para o tecto, calado, a arfar muito; Virgilia empallideceu, levantou-se, foi até á janella. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras cousas. O sujeito magro contou uma anecdota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.

      — Trinta e oito contos, disse elle.

      — Am?... gemeu o enfermo.

      O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma cousa, se queria tomar um calice de vinho.

      — Não... não... quar... quaren... quar... quar...

      Teve um accesso de tosse, e foi o ultimo; dahi a pouco expirava elle, com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de offerecer os quarenta contos; mas era tarde.

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      O velho colóquio de Adão e Caim

      E nada. Nenhuma lembrança testamentaria, uma pastilha que fosse, com que do todo em todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada. Virgilia tragou raivosa esse mallogro, e disse-m’o com certa cautela, não pela cousa em si, senão porque entendia com o filho, de quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia pensar mais em semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por exemplo.

      Lá me escapou a decifração do mysterio, esse doce mysterio de algumas semanas antes, quando Virgilia me pareceu um pouco differente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preoccupação exclusiva daquelle tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflictos politicos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. En só pensava naquelle embryão anonymo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinivel, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem.

      O melhor é que conversavamos os dous, o embryão e eu, falavamos de cousas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãosinhas gordas, ou então traçava a beca de bacharel, porque elle havia de ser bacharel, e fazia um discurso na camara dos deputados. E o pae a ouvil-o de uma tribuna, com os olhos rasos de lagrimas. De bacharel passava outra vez á escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou então caía no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no espirito uma edade, uma attitude; esse embryão tinha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: elle mamava, elle escrevia, elle valsava, elle era o interminavel nos limites de um quarto de hora, — baby e deputado, collegial e pintalegrete. Ás vezes, ao pé de Virgilia, esquecia-me della e de tudo; Virgilia sacudia-me, reprochava-me o silencio, dizia que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava em dialogo com o embryão; era o velho colloquio de Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mysterio e o mysterio.

      91

      Uma carta extraordinária

      Por esse tempo recebi uma carta extraordinaria, acompanhada de um objecto não menos extraordinario. Eis o que a carta dizia:

      ⁠

      «Meu caro Braz Cubas.

      «Ha tempos, no Passeio Publico, tomei-lhe de emprestimo um relogio. Tenho a satisfação de restituir-lh’o com esta carta. A differença é que não é o mesmo, porém outro, não digo superior, mas egual ao primeiro. Que voulez-vous, monseigneur, — como dizia Figaro, — c’est la misère. Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei contal-as pelo miudo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquellas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de S. Francisco; finalmente, almóço.

      Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fructo de longo estudo, um novo systema de philosophia, que não só explica e descreve a origem e a consummação das cousas, como faz dar um grande passo adeante de Zenon e Seneca, cujo stoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente espantoso este meu systema; rectifica o espirito humano, supprime a dor, assegura a felicidade, e enche de immensa gloria o nosso paiz. Chamo-lhe humanitismo, de Humanitas, principio das cousas. Minha primeira idéa revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Braz Cubas, verá que é devéras um monumento; e se alguma cousa ha que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver emfim apanhado a verdade e a felicidade. Eil-as na minha mão essas duas esquivas; após tantos seculos de lutas, pesquizas, descobertas, systemas e quédas, eil-as nas mãos do homem. Até breve, meu caro Braz Cubas. Saudades do

      Velho amigo

      Joaquim Borba dos Santos.»

      Li esta carta sem entendel-a. Vinha com ella uma boceta contendo um bonito relogio com as minhas iniciaes gravadas, e esta phrase: Lembrança do velho Quincas. Voltei á carta, reli-a com pausa, com attenção. A restituição do relogio excluia toda a idéa de burla; a lucidez, a serenidade, a convicção, — um pouco jactanciosa, é certo, — pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; ha cousas que se não podem rehaver integralmente; mas emfim a regeneração não era impossivel. Guardei a carta e o relogio, e esperei a philosophia.

      92

      Um homem extraordinário

      Já agora acabo com as cousas extraordinarias. Vinha de guardar a carta e o relogio, quando me procurou um homem magro e meão, com um bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado com uma irmã do Cotrim, chegára poucos dias antes do norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi elle mesmo que me disse isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio de Janeiro, por desaccordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os ministros que serviram com elle. De resto, a revolução estava outra vez ás portas. Neste ponto, comquanto trouxesse as idéas politicas um pouco baralhadas, consegui organisar e formular o governo de suas preferencias: era um despotismo temperado, — não por cantigas, como dizem alhures, — mas por pennachos da guarda nacional. Só não pude alcançar se elle queria o despotismo de um, de tres, de trinta ou de tresentos. Opinava por varias cousas, entre outras, o desenvolvimento do trafico dos africanos e a expulsão dos inglezes. Gostava muito de theatro; logo que chegou foi ao theatro de S. Pedro, onde viu um drama soberbo, a Maria Joanna, e uma comedia muito interessante, Kettly, ou a volta á Suissa. Tambem gostara muito da Deperini, na СКАЧАТЬ