Название: Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)
Автор: Machado de Assis
Издательство: Bookwire
Жанр: Языкознание
isbn: 9782291092704
isbn:
Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corria à minha casa, e entrava a girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse a recente produção, e eu falava-lhe de mil coisas diferentes, — do último baile do Catete, da discussão das câmaras, de berlindas e cavalos, — de tudo, menos dos seus versos ou prosas. Ele respondia-me, a princípio com animação, depois mais frouxo, torcia a rédea da conversa para o seu assunto dele, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a rédea para o outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até que empacava de todo e saía triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo, eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz...
49
A ponta do nariz
Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.
Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz ele se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis a oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
50
Virgília casada
— Quem chegou de São Paulo foi minha prima Virgília, casada com o Lobo Neves, continuou Luís Dutra.
— Ah!
— E só hoje é que eu soube uma coisa, seu maganão...
— Que foi?
— Que você quis casar com ela.
— Idéias de meu pai. Quem lhe disse isso?
— Ela mesma. Falei-lhe muito em você, e ela então contou-me tudo.
No dia seguinte, estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do Plancher, vi assomar, a distância, uma mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último apuro. Cortejamonos; ela seguiu; entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco acima; fiquei atônito.
Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que chegamos a trocar duas ou três palavras. Mas noutro baile, dado daí a um mês, em casa de uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não desornava então os do segundo, a aproximação foi maior e mais longa, porque conversamos e valsamos. A valsa é uma deliciosa coisa. Valsamos; não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado.
— Está muito calor, disse ela, logo que acabamos. Vamos ao terraço?
— Não; pode constipar-se. Vamos a outra sala.
Na outra sala estava Lobo Neves, que me fez muitos cumprimentos, acerca dos meus escritos políticos, acrescentando que nada dizia dos literários por não entender deles; mas os políticos eram excelentes, bem pensados e bem escritos. Respondi-lhe com iguais esmeros de cortesia, e separamo-nos contentes um do outro.
Cerca de três semanas depois recebi um convite dele para uma reunião íntima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: — O senhor hoje há de valsar comigo. — Em verdade, eu tinha fama e era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Creio que essa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la, e todos com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e giravam... Um delírio.
51
É minha!
— É minha! disse eu commigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a idéa entranhando no espirito, não á força de martello, mas de verruma, que é mais insinuativa.
— É minha! dizia eu ao chegar á porta de casa.
Mas ahi, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessorios, luziu-me no chão uma cousa redonda e amarella. Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia-dobra.
— É minha! repeti eu a rir-me; e metti-a no bolso.
Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repellões da consciencia, e uma voz que me perguntava porque diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas sómente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquelle que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operario que não teria com que dar de comer á mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o melhor meio, o unico meio, era fazel-o por intermedio de um annuncio ou da policia. Enviei uma carta ao chefe de policia, remettendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvel-o ás mãos do verdadeiro dono.
Mandei a carta e almocei СКАЧАТЬ