Sentiu uma dor familiar nas mãos, algo mais forte do que a necessidade de beber para afastar suas emoções. Cerrou os dedos e pensou em alvos de papel e na distância entre a arma e seus alvos.
Seu coração então confortou-se um pouco ao pensar em alguns poucos itens que tinha para decorar o quarto nos próximos dias. Não havia muita coisa, mas havia algo do qual Avery quase tinha se esquecido nos últimos dias. Devagar, tentando tomar coragem enquanto caminhava pela sala repleta de caixas, entrou no quarto.
Parou na porta por um momento e olhou para a arma, parada num canto.
O rifle era uma Remington 700 que pertencera a Avery desde sua formatura na faculdade. Durante seu último ano, ela havia feito planos de se mudar para algum lugar remoto, para poder caçar veados no inverno. Era algo que seu pai sempre fizera e, mesmo não sendo tão boa naquilo, Avery gostava. Suas amigas tiravam sarro por conta disso e provavelmente ela havia assustado um ou dois namorados na época da escola por conta de seu gosto pela caça. Quando seu pai morrera, sua mãe havia implorado para que ela ficasse com a arma, dizendo que seu pai gostaria que ela a guardasse.
E a arma a acompanhara, de mudança em mudança, geralmente ficando guardada em um guarda-roupas ou debaixo da cama. Dois dias depois de se mudar para a casa nova, Avery havia levado a arma até uma concessionária para limpá-la. Ao buscá-la, também comprou três caixas de munição.
Imaginando que poderia sentir vontade de atirar a qualquer momento, Avery vestiu suas calças térmicas. Não estava tão frio naquela manhã—um pouco acima de zero—mas ela não estava acostumada a andar pela floresta. Ela não tinha roupas camufladas, então se contentou com um par de calças verde-escuro e um suéter preto. Ela sabia que aquela não era a vestimenta mais segura para caçar veados, mas era o que ela tinha naquele momento.
Avery vestiu um par de luvas finas (tendo que buscar nas caixas para encontrá-las), colocou seu par de tênis mais velho e saiu. Entrou no carro e dirigiu por três quilômetros até uma extensão da estrada que levava a uma enorme floresta, que pertencia ao homem de quem ela havia comprado a casa. Ele havia lhe dado permissão para caçar em suas terras, quase como um bônus aleatório pela compra da casa por dez mil dólares acima do valor pedido.
Ela encontrou um lugar ao lado da estrada onde claramente caçadores vinham passando há anos. Estacionou ali, com o lado do motorista quase dentro da pista. Então, pegou seu rifle e entrou na floresta.
Avery sentiu-se boba desfilando pela floresta. Ela não caçava há pelo menos cinco anos—justamente no final de semana em que recebera a arma de sua mãe. Estava sem o equipamento adequado—botas, aroma de veado para borrifar nas árvores, chapéus ou coletes laranjas. Mas também sabia que aquela era uma manhã de quarta-feira, e que a floresta estaria basicamente sem nenhum outro caçador. Sentiu-se um pouco como aquela criança tímida que só joga basquete sozinha e sai correndo quando as crianças mais talentosas chegam.
Caminhou por vinte minutos e chegou a uma subida. Caminhou em silêncio, com a mesma precaução que tinha enquanto detetive de homicídios. A arma caía bem em suas mãos, ainda que parecesse um pouco estranha. Avery era acostumada a usar armas menores, principalmente sua Glock, e por isso o rifle parecia muito poderoso. Ao chegar ao topo da pequena subida, viu carvalho caído a vários metros. Utilizou-o para se abaixar e se esconder, sentada no chão e encostando-se em uma árvore. Reclinada, soltou o rifle a seu lado e olhou para o topo das árvores.
Avery ficou ali em paz, sentindo-se ainda mais cercada pelo mundo do que quando estivera em sua varanda, um hora antes. Sorriu ao imaginar Rose ali com ela. Rose odiava estar ao livre e provavelmente desaprovaria se soubesse que sua mãe estava sentada em uma floresta, com um rifle, procurando um veado para matar. Pensando em Rose, Avery pode limpar sua mente e focar em tudo a seu redor. E quando pode fazer isso, os instintos de sua carreira apareceram.
Ela ouviu folhas mexendo no chão, assim como nas árvores, enquanto as últimas folhas teimosas teimavam em sobreviver ao inverno. Escutou algo à sua direita, um pouco acima, provavelmente um esquilo. Acostumada com seu entorno, finalmente pode relaxar.
Ouviu tudo aquilo, mas também viu seus próprios pensamentos tomando forma. Jack e sua namorada, ambos mortos. Ramirez, morto. Pensou em Howard Randall, caindo na água, provavelmente também morto. E por fim... viu Rose... como ela estivera constantemente em perigo por conta do trabalho de sua mãe. Rose não merecia aquilo. Ela havia feito o possível para ser uma filha querida até que finalmente chegara a seu limite.
Na verdade, Avery havia se impressionado por quanto tempo Rose havia segurado aquela barra. Especialmente depois do último caso, onde a vida dela estivera literalmente em perigo. E aquela não fora a primeira vez.
O barulho de um galho se quebrando atrás de Avery chamou sua atenção. Seus olhos se abriram rapidamente e, mais uma vez, ela olhou para o topo das árvores. Devagar, pegou o rifle ao ouvir um outro barulho vindo de trás de si.
Aproximou o rifle de seu corpo e lentamente o engatilhou. Levantou-se com cautela. Respirou fundo, cuidando para não mover as folhas. Seus olhos escanearam a área embaixo da pequena subida onde ela estava escondida. Ela viu um veado à esquerda, a cerca de cem metros. Era um macho pelo que ela podia ver. Não era grande, mas já era algo. Avery viu outro mais longe, porém parcialmente coberto por duas árvores.
Voltou a se mexer, colocando o rifle ao lado do carvalho caído. Flexionou o dedo para encontrar o gatilho e firmou a mão. Tentou mirar e teve mais dificuldade do que estava esperando. Finalmente, acertou a mira e disparou.
O barulho do tiro tomou conta da floresta. A arma ricocheteou, mas apenas levemente. Ao atirar, Avery sentiu seu braço desviar para a direita.
Então, viu o veado escapando.
Quando o som da bala encheu seus ouvidos em meio à floresta, algo em sua mente pareceu congelá-la. Em um momento paralisante, Avery não pode se mexer. Naquele momento, ela não estava na floresta, tendo falhado na caça a um veado. Ao invés disso, estava na sala de Jack. Havia sangue por todos os lados. Ele e sua namorada haviam sido mortos. Ela não havia conseguido evitar e, por isso, sentia que ela tinha matado os dois. Rose estava certa. Era culpa dela. Ela poderia ter evitado se fosse mais rápida—se tivesse sido melhor.
Os olhos ensanguentados de Jack a olhavam, mortos e parecendo pedir ajuda. Por favor, diziam. Por favor, volte e faça tudo certo.
Avery largou a arma. O rifle caiu no chão e, novamente, ela viu-se chorando. Lágrimas quentes, abundantes. Pareciam pequenas corredeiras de fogo descendo por seu rosto frio.
- É minha culpa – ela disse, sozinha na floresta. – É minha culpa. Tudo isso.
Não só Jack e a namorada... não. Ramirez, também. E todos que ela não havia conseguido salvar. Ela deveria ter feito melhor, muito melhor.
Avery viu a foto de Jack e Rose na frente da árvore de Natal em sua mente. Ela encolheu-se como uma bola no carvalho caído e começou a tremer.
Não, pensou. Não agora, não aqui. Recomponha-se, Avery.
Segurou a onda de emoções e respirou fundo. Não foi tão difícil. Afinal de contas, ela vinha lidando com aquilo por pelo menos uma década. Devagar, levantou-se, pegando a arma do chão. Olhou rapidamente para o lugar onde estavam os dois veados. Não se arrependeu de ter errado o tiro. Simplesmente, não se importou.
Virou-se СКАЧАТЬ